Facilmente nos damos conta
do ambiente de fácil integração que ocorre em comunidades pequenas ou médias,
como sucede numa aldeia. Nestes nichos, de uma forma geral, todos os vizinhos se
conhecem através de rotinas e rituais que os fazem sentir parte de um todo, com
uma identidade e valores próprios. Consolidam-se em espaços de convívio alheios
a pressas, onde se vai muitas vezes só por ir, para estar com quem anda por lá,
pois sabe-se que anda sempre por lá alguém conhecido ou que se passa a conhecer.
Numa micro-sociedade em que
as crianças brincam na rua e os velhotes usufruem das tertúlias de bancos de
jardim, quem está sente-se parte de um todo e quem vem de fora (seja
estrangeiro ou nacional) é capaz de ser, mais tarde ou mais cedo, incluído,
embora naturalmente mais exposto.
Por comparação, numa grande
cidade é obviamente mais difícil ir a um local desta e sentir-se que se conhece
“toda a gente”. O distanciamento é o mais natural e os ajuntamentos dão-se,
mais provavelmente, por partilha de pontos específicos de interesse. Não se vai
só por ir, há mais ofertas, mais critérios, mais espaços, menos tempo, menos
paciência para conversas, mas eventualmente mais possibilidades de acesso a
muitas formas de cultura geral.
Ora, eu cresci numa vila /
pequena cidade, no caso Cantanhede, em que existe uma mistura destes dois
mundos. A minha “aldeia” sempre foi a minha rua com casas em banda contínua: a Rua
do Poço (atual Jaime Cortesão). Puxo pelas minhas memórias de infância deixando
que a caneta as coloque no papel ao jeito do final do filme “Cinema Paraíso”…
Recordo os sacos de pano com
pão às portas das casas de manhã, o som da passagem do amola-tesouras, a
alegria de ver chegar o carteiro, eu Vasquito a jogar à bola na rua com o Rui,
o Bruno, Nazé, os Pintos, o Marquito, o João Vidal ou até o Renato que tinha
ali os avós, as conversas de telenovela das comadres Ti Luz, Lucília, Naninha,
entre outras com a minha avó Santana, o meu avô que após os seus longos
passeios de bicicleta me levava a ver os jogos de damas no velho Bar Necal, a
papelaria da Manuela da família Camazão onde o meu irmão se sentava no degrau a
devorar banda desenhada quando ainda nem sabia ler, o meu pai a vir da caça, a
minha mãe a conduzir o seu Diane, o senhor
Arlindo dos caixões a chegar de bicicleta, o cumprimento diário “eh lé” do Ti
Mário Maduro, a tranquilidade do senhor Marques do Gás, a boa disposição da Linita
mãe do Kit Carlos e do Rui, o senhor Mendes que vinha da Suiça, o Amândio
sempre ligado ao ciclismo, a Dorinda a ir para a sua loja de roupa, os relatos
dos cruzeiros do senhor João, as novidades da música vindas da África do Sul
pelo João Vidal e o mítico “Zé das Bifanas” do Zé da Clara que sempre foi
animado ponto de convívio entre várias gerações…
Com o passar dos tempos,
muita coisa mudou e pouca gente ainda lá vive... Contudo tenho a felicidade de lá
poder passar quase todos os dias e relembrar.
Há tempos encontrei uma
vizinha (assim nos continuaremos sempre a tratar, de forma cúmplice e saudosa)
que me disse que havia um habitante novo na rua! Nada mais, nada menos do que
um rapaz que veio de Lisboa e que lhe disse que a sua avó morou naquela mesma
rua há 60 anos atrás!
Quem sabe, se a Rua do Poço
não voltará a ser mais um exemplo de uma “aldeia” dentro do aglomerado urbano
mais vasto que dê “calor humano” a mais gerações?
Quero com tudo isto realçar
a importância da preservação dos centros históricos (das aldeias dentro das
cidades) para possibilitar o viver em comunidade, a criação de memórias
partilhadas, a vivência do dia-a-dia na sua rotina própria, pois, efetivamente,
é assim que a identidade de um espaço comum acontece.
vascoespinhalotero@hotmail.com
(*)
Psicólogo das Organizações / Gestão de Recursos Humanos / Desporto / Orientação
Vocacional
Leia
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