quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

“E CHAMEI CASA AQUELE LUGAR”


Quando era pequeno, passei muitas férias de Verão na Praia da Tocha. Já na altura gostava, mas sinto que com o passar do tempo a fui estimando cada vez melhor. É talvez como aqueles cozinhados que em novos não sabemos apreciar e que à medida que amadurecemos nos deleitamos cada vez mais. Puxando a metáfora para a realidade, note-se em rodapé que ali se come o melhor picapau e mariscada dos arredores. Com toda a sua tradição, gentes e beleza natural, a Praia da Tocha já por si é especial para quem habita na Gândara ou por lá passa de vez de quando. Mas dentro dela, existe um sítio diferente e é disto que vos quero falar…

Este sítio merece destaque, entre outras coisas, se analisado numa determinada perspetiva. Não sei se lhe devo chamar taberna, tasca, café, bar, associação social, recreativa ou cultural, pois, enfim, acaba por ser tudo isso e algo mais. Falo do “Piolho”. Para mim, este contempla o que de melhor existe num meio rural (aldeia) e num meio urbano (cidade)! Passo a explicar…

Primeiro a sua vertente do campo. Ora, tem aquela familiaridade de bem receber ou, se preferirem, uma margem de inclusão que se nota em muitos detalhes como, por exemplo, na facilidade do encontrar / cumprimentar quem não se vê há algum tempo e mesmo quem (ainda) não se conhece. Saboreia-se uma conversa abrangente pincelada com sorrisos, degusta-se a música ou deixa-se fluir o silêncio de companhia. Lá é natural deixarmo-nos ir, estar, ser… O tempo passa noutro ritmo e é este mesmo o seu segredo.

Sabem quando se tem baixas expetativas ou má impressão sobre pessoas, por uma questão de estereótipo ou preconceito, e depois se vem a descobrir que afinal têm histórias, sentido de humor e sabedoria distintas? De facto, assim se encontram muitas surpresas. Singularidades que vale a pena apreciar numa verdadeira sala de estar gandaresa com uma abertura de mentalidades supostamente mais comum noutras paragens.

“Garreias” entre etílicos mais espampanantes e “bitaites” pouco galantes para a capital do concelho por algum ego territorial mais carente de atenção também fazem parte (já pouco frequente diga-se) do menu. E o que é certo é que neste contexto se acolhem tranquilamente pessoas de todas as idades, origens e ofícios.

Já vi, por exemplo, pessoas que se estavam a levar demasiado a sério em gabarolices a levarem “tacadas” humorísticas, na hora certa, para lhes “pôr os pés na terra” e a responderem com um sorriso humilde de quem reconhece que “é justo, sim senhor”.

Agora a faceta de cidade. Vejamos, tem aquela irreverência artística, o conhecimento cosmopolita (há muita música alternativa que se conhece ali pela primeira vez). Mesmo com a inevitável necessidade económica e, por vezes, comercial, quem o “governa” (a incontornável Alice) continua a saber que o espírito da casa está na diversidade, na coragem de trazer ofertas artísticas, sociais e culturais fora da caixa, de longe, esquisitas, com gosto ou à procura dele. Abrem-se portas a novos talentos e a artistas com reconhecida carreira em segmentos peculiares que se deixam convencer pelo charme da praia, pela mística do lugar e pela amizade sedutora das suas gentes.

É certo que muitos detalhes são difíceis de explicar a quem nunca lá foi, imaginem então por quem já lá vive há gerações… A verdade é que há coisas que só se vivem na praia com a malta que lá se junta e o “Piolho” é um inevitável ponto de encontro. Quando revemos pessoas e nos (re)lembramos das suas sensações naturalmente sentimos, mesmo antes de dizer, "tenho saudades de ir à praia e de uma noite no Piolho”. É que sabe bem…

Há que deixar claro que a Praia da Tocha é mais do que o “Pilho”, é certo, mas o espírito que liga as várias gerações da sua História atravessa aquela casa já desde a primeira metade do século XX e transporta a sua herança para o futuro. Já viajei por alguns países e conheço alguns lugares (poucos inevitavelmente) em que senti uma magia parecida: Valparaíso no Chile, Nova Orleãs nos Estados Unidos, Salta na Argentina, Isfahan no Irão, Dulombi na Guiné Bissau, São Petersburgo na Rússia, Hoi An no Vietname, Ko Phi Phi na Tailandia, Amesterdão na Holanda, Pádua em Itália ou Santiago de Compostela na Galiza por exemplo. Invariavelmente, trata-se sítios de dimensão não demasiado grande, mas com acesso a muita coisa, sem grandes confusões, com espaço para saborear o tempo e companhia como se fosse uma música.

Uma vez, estava na praia e começou a ver-se fumo na floresta do Palheirão. Um amigo que estava comigo de imediato se levantou e disse-me “vou já a casa buscar o trator para ajudar a levar água, pois pode ser preciso”. Grande Julião, o amor pela praia vê-se em coisas destas.

Conta-nos a música de Jorge Palma: “e chamei casa aquele lugar”… E como se costuma dizer: casa é onde mora o coração.

vascoespinhalotero@hotmail.com
(*) Psicólogo das Organizações / Gestão de Recursos Humanos / Desporto / Orientação Vocacional

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