OS CANTANHEDES DA CIDADE
(parte 1)
A infância e adolescência (ou juventude, como preferirem) são fases na vida de um ser humano muito importantes para o “limar” da sua personalidade, assumindo particular importância os valores da família, dos amigos e da comunidade local. Relativamente a este último pormenor, revela-se interessante analisar o caso da cidade de Cantanhede, mais propriamente das gerações (a que também pertenço) que aqui passaram os seus períodos de infância e adolescência durante os anos 80 e 90.
Comecemos pela adolescência. Estas gerações em Cantanhede dividiam-se em vários grandes grupos: os “meninos bem”, os “queques”, os “freaks”, a “malta do bairro” (de zonas mais desfavorecidas economicamente). As suas bases de inter-relacionamento pessoal eram estabelecidas em zonas distintas, casas de amigos e/ou cafés/bares onde só se atrevia a entrar pessoal dos grupos dominantes.
Na falta de maiores desafios, o “corte e costura” de gozo e maldizer por demais evidente era (e ainda é?...) a arma de defesa de cada grupo mais frequentemente utilizada. Assim se acentuavam as fronteiras com “os outros” e reforçava essa prática depreciativa como a típica e valorizada maneira de ser de toda a gente do grupo. Mesmo daqueles que com isso não concordavam, mas a quem o tempo acabava por dobrar. “Junta-te aos bons serás um deles, junta-te aos maus serás pior do que eles”.
Nestas guerras de protagonismos de bota-abaixo, o grupo dos “meninos bem” sempre deu as cartas mais altas, exibindo roupas de marca e apregoando as suas ligações familiares ou laborais às cidades de alto nível, enquanto marcas registadas do seu “pedigree” distinto do restante povo jovem de Cantanhede.
Ora, este grupo de pequenos “jet-set” acabou por ser apontado como prova cabal por quem acusava o pessoal de Cantanhede de revelar desprezo relativamente ao resto do concelho. Nesta imagem elitista se baseava o pessoal de fora da cidade para justificar a sua antipatia, não apenas por este grupo, mas por todos os “Cantanhedes” que assim eram colocados no mesmo saco, mesmo aqueles que pertenciam aos restantes grupos que não partilhavam as características do tal grupo das pompas e circunstâncias.
Ora, sucedia que toda esta malta dos vários grupos da cidade só se misturava quando abria um café ou bar novo. Aí, nesses momentos sentia-se ou fingia-se existir um espírito de comunidade entre a juventude de Cantanhede. Porém, no fundo, as coisas não passavam de sorrisos de circunstância entre quem fazia que não sabia quem era o outro ou abraços de aparente euforia de quem já não se via há muito tempo (como se não se cruzassem todos os dias na rua ou escola ignorando-se propositadamente ou não)…
Contudo as ressacas do normal dia-a-dia formatado e rotineiro nos tais grupos bem distintos acabavam rapidamente por chegar e tudo o resto pareciam partes soltas de um sonho de uma noite mal dormida… Tudo voltava ao piloto automático de altivez e isolamento chique, sem vontade de construir algo em comum com simplicidade e humildade.
(parte 2)
Relativamente à infância de toda esta geração dos anos 80 e 90, um factor interessante ocorreu: as saudosas férias desportivas que a Sociedade Columbófila Cantanhedense organizava! Que ninguém tenha dúvidas: esta iniciativa estruturante foi um pilar importantíssimo na formação de toda esta gente (na qual me incluo) que influenciou todos os contributos que esta geração teve (ou poderia ter tido), tem e terá na nossa sociedade!
Aliando educação, desporto, cultura, saúde ao convívio e boa disposição dos monitores, promovia-se uma aprendizagem fácil de valores de trabalho em equipa, espírito de camaradagem e gosto pela cultura geral nas suas várias vertentes e não apenas nas mais popularuchas.
É natural que os miúdos dessa época passem pela velha sede e se lembrem do papel fantástico que tiveram dirigentes e monitores tais como: Alberto Abrantes, Casas de Melo, Lurdes Silva, Dora Manso, Francisco Cristovão, João Barreto, Tó Vagos, Celsino, Carmo, Pedro Cardoso, Ferreirinha, irmãos Nogueira, Paulo “francês”, Clara Neves, Ferreirinha, entre muitos outros igualmente importantes.
Assim, foi a nossa infância na cidade de Cantanhede, mas depois, na passagem para a adolescência, uma brecha surgiu e não continuou esta fabulosa base que nos unia e misturava independentemente das nossas origens, gostos, descendências, moradas, turmas, etc.
O que faltou? Talvez causas mobilizadoras comuns ou uma cultura de participação em qualquer que fosse o evento desde que fosse levado a cabo por uma entidade de referência para todos nós. É certo que muitos andavam no futebol, na natação, entre outras modalidades desportivas ou passatempos, mas o que também é certo é que nada nos unia, não havia nada de transversal, coisa que já não sucedia nem sucede na maioria das restantes freguesias do concelho: quase todas têm uma associação à volta da qual toda a gente das várias gerações se une e participa nas várias actividades, mesmo naquelas de que nem toda a gente gosta!
Ora, em Cantanhede, resquícios de um bairrismo positivo, “à antiga”, no que respeita a existir um forte apoio dentro da sua comunidade e alguma riqueza cultural podia ser encontrado no “Bairro” de São João, mas que foi perdendo este fulgor devido à perda do seu adversário histórico que era o “bairro” localizado mais ao centro da cidade.
A meu ver, faltou isto mesmo à geração de Cantanhede dos anos 80 e 90… Julgo, no entanto, que quem passou a adolescência por estas bandas nos anos 80 foi ainda mais fustigado, pois se virmos bem: quase não ficou cá ninguém dessa geração, quase todos foram embora!
(parte 3)
Devido ao rótulo elitista colocado (ou existente realmente) na geração jovem de Cantanhede dos anos 80 e 90 (ou pelo menos numa parte dela), algumas razões históricas concretas e muitas outras justificações baseadas no “diz que disse” serviram para solidificar de geração para geração este desconfiado “olhar de lado” para os meninos e/ou senhores da cidade.
Segundo estes pressupostos, as restantes freguesias do concelho não tinham na altura ou, porventura, nunca tiveram no passado grandes afinidades e motivos de simpatia para com Cantanhede, indo um pouco mais longe: para com os tais de quem se dizia “comerem da gaveta”.
Neste particular, algum humor é também necessário, no sentido em que, muitas vezes, perguntava-se a alguém de outra freguesia que dizia não gostar dos “Cantanhedes” o motivo de tal posição e as respostas sempre foram variadas: silêncio, episódios passados de pancadaria, atitudes, bocas ou troca de galhardetes mal resolvidos, encolher de ombros, “não sei, mas não gosto” ou evocação de motivos históricos do tipo “foi por causa disto” sem confirmação de factores anteriores ou paralelos…
Ao longo dos últimos anos, estas barreiras de preconceito, desconfiança e bairrismo invejoso entre “os de Cantanhede e os de fora” foram desaparecendo lentamente em grande parte devido, na minha opinião, a um evento que podemos dizer já marcar a história do nosso concelho: a Expofacic!
Repare-se que, no início desta festa, as pessoas de cada freguesia apenas iam às tasquinhas e stands das suas freguesias, mas ao longo dos anos as coisas foram felizmente mudando… A mistura de gentes começou, laços entre vizinhos (que mudavam de um ano para o outro para não criar zonas rígidas) foram sendo criados, amizades surgiram, trocas de jogadores da bola entre as equipas das terras foram sendo feitas, inclusivamente com… Cantanhede! Entre muitos outros pequenos, mas importantes exemplos.
A Expofacic teve o condão de criar um sentimento de orgulho dos munícipes pelo concelho de Cantanhede, por fazer-nos deixar de ter vergonha de dizer que somos do concelho de Cantanhede. Ora, consequentemente, foi diminuindo também o preconceito (com ou sem razões efectivas e mesmo justificadas) pelos “Cantanhedes” da cidade.
vascoespinhalotero@hotmail.com
(*) Psicólogo das Organizações / Gestão de Recursos Humanos / Desporto / Orientação Vocacional
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