sexta-feira, 20 de junho de 2014

NIVELAR POR BAIXO (2ª parte)


Atualmente, vivemos no dia-a-dia num ambiente de crispação devido, por exemplo, à estimulação de preconceitos, estereótipos, rivalidades invejosas e mesquinhas estre setores público e privado, deixando as elites apenas a ver passar o cortejo. Surgem os “queixinhas” a dizer que os outros têm mais migalhas do que eles e que esses devem também ficar sem nada (em vez de juntos lutarem por mais de direito).
Frequentemente temos uma sensação de que estamos numa peça de teatro com alguns personagens “coitadinhos” moralistas que desejam secretamente um apadrinhamento superior que os devolva ao lugar entre a classe alta que outrora foi seu. Crendo estes que o meio para lá chegar será apregoar uma ética coletiva de masoquismo sofredor, porque “assim é que é”.
Por ignorância, tradição social / familiar e/ou intenção manipuladora, passam-se várias frases feitas que se dizem de cor, quase de forma automático, treinada, reativa. Nestes momentos leves (que no conjunto traduzem algo bem mais profundo na sociedade) dá a sensação que não se tem noção do conteúdo e no uso que dele poderá ser feito em “nome do povo”. Uma imagem de facto vale por mil palavras e, às vezes, um conto de ficção ajuda a esclarecer a realidade.
Então, certo dia, colocaram duas rãs numa panela e meteram-na ao lume. Quando a água começou a ficar morna, ambas se sentiram relaxadas e espreguiçaram-se para gozar aquela amena temperatura. No entanto, a água foi aquecendo e uma das rãs, por instinto ou por cautela, decidiu saltar da panela e voltar ao campo onde tinha sido apanhada. Em boa hora o fez… A outra, por preguiça ou por comodismo (ou por pensar que a cozinheira até era boa pessoa) foi ficando. O quentinho sabia-lhe bem e não estava para se incomodar. A água foi aquecendo e a rã foi perdendo as forças e a vontade de saltar da panela. Quando viu a sua vida em perigo já não tinha forças para se mexer e, por mais que tentasse, acabou cozinhada…
Ora, ao aceitarmos esta subserviência, não tardaremos muito para nos convertermos em escravos agradecidos e a ter vergonha, remorsos e/ou sensação de mau carácter só de pensar em exigir que se cumpram acordos laborais prévios, direitos sociais, a Constituição, a esperança de uma vida de cabeça levantada, a liberdade…
No caso do trabalho por conta de outrem, seja no público, seja no privado, estamos a chegar a um ponto em que parece que o salário é um favor, dádiva, esmola oferecida pelo gestor. Ora, os patrões precisam tanto dos empregados como estes dos patrões, muitos para continuarem com o estilo de vida a que se habituaram legitimamente ou não. Afinal de contas, há alguma empresa que funcione sem empregados?
Desde há alguns anos que estamos a navegar na linha entre a abertura de mentalidades e a tacanhez do antigamente, no que à qualidade de vida diz respeito. Esta batalha que se tem vindo perder passo a passo institui na população, de forma massiva, a ideia do “salve-se quem puder”, do “não confio em ninguém”, de cada um por si…
Enfim, traz o que de pior há no ser humano em desespero. É o nosso carácter e o legado olhos nos olhos que passamos para as próximas gerações que que está em causa. Não na vertente da imagem que damos lá para fora, mas sim da nossa verdadeira essência, identidade, valores, alma…

vascoespinhalotero@hotmail.com
(*) Psicólogo das Organizações / Gestão de Recursos Humanos / Desporto / Orientação Vocacional

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quarta-feira, 4 de junho de 2014

NIVELAR POR BAIXO (1ª parte)


Nos tempos que correrem, vemos o argumento de equidade entre público e privado ser muitas vezes usado por Governo e Troika, entre outras elites, para justificar cortes, quer num lado, quer noutro, de uma só vez ou por fases. Enfim, o método parece simples, estica-se a corda num lado para depois poder fazer o mesmo no outro, tudo em nome da tal… equidade entre público e privado. Ficamos com a sensação ou pelo menos com a desconfiança de estarmos perante um entretenimento de dividir para reinar.
É como se pais dissessem aos seus dois filhos que, por um ter um brinquedo e o outro não, a solução seria pôr o brinquedo no lixo para ambos ficarem equitativamente… insatisfeitos. Curiosamente, este argumento é só usado por quem manda nivelar por / para baixo…
Por exemplo, numa altura em que se discute o aumento do tempo mínimo de trabalho no setor público, não será difícil adivinhar que, daqui a uns tempos, também as horas de trabalho no privado poderão ser (oficialmente) esticadas… Depois virá muita gente dizer que no público também se tem de apertar, seguida da anterior reação e assim sucessivamente até chegarmos aos níveis de exploração do tempo de vida das pessoas que se praticam em países asiáticos.
De facto não se trata sequer de aumentar a produtividade, parece pretender-se somente baixar o custo da mão-de-obra e prolongar o tempo ao seu serviço.
Um facto simples parecer comprovar esta visão. Com o fim dos contratos coletivos e as portarias de extensão, os trabalhadores do setor privado continuarão a dizer “muita sorte tenho eu se tiver trabalho” e a ser mais facilmente “espremidos”. Os colegas do público também o serão por outras vias como, por exemplo, o esvaziamento de funções da responsabilidade de funcionários públicos para justificar a extinção do posto de trabalho e o consequente, melhor ou pior disfarçado, despedimento sem justa causa e/ou, progressivamente, com ausência de indeminização…
Vale a pena recuar um pouco no tempo e recordar que, desde os primeiros governos dos anos 70 pós 25 de Abril, a aproximação entre setor público e privado era um objetivo assumido claramente, embora com aspirações positivas bem distintas… Na altura, o desafio proposto era tornar o emprego no privado equiparado em dignidade e segurança ao seu “irmão” público. Enfim, de forma genuína, procurava-se nivelar por / para cima em termos de direitos e deveres. Apenas nas últimas décadas, o conteúdo desta visão foi (propositadamente?) desvirtuado, o sentido desta aproximação inverteu-se e agora a lógica parece ser apertar no privado e depois dizer que os “malandros” do público têm de ir atrás… Ora, porque não se segue o rumo inverso hoje em dia?...
Quando algum atrevido ou ingénuo questiona o porquê de não se darem direitos (que não são privilégios, pois também contêm deveres) que foram estabelecidos no setor público ao setor privado, o que acontece? Há sempre alguém que responde “popularuchamente”: “pois, é só direitos, só direitos, então e quem paga a crise”?
Esta estigmatização social tem vindo a ser aproveitada e/ou estimulada pelos sucessivos Governos e pela troika, porém as justificações dadas para o corte destas que seriam afinal as efetivas “gorduras” do Estado (deixando de fora as verdadeiras…) colidem com alguns factos.
Senão vejamos, o peso dos salários na despesa pública é de apenas 20%, a maior fatia é concentrada em altos cargos (daí a média poder parecer elevada para o comum cidadão, mas a moda não…) e a percentagem de funcionários públicos na nossa população ativa é das mais baixas da União Europeia.
Diz-se que a riqueza é gerada pelo privado, mas também há muita riqueza desviada pelo mesmo, acima de tudo, pelo “grande” privado e não tanto pelos pequenos comerciantes, no que respeita aos números redondos.
O argumento da recessão e/ou da crise tem servido para tudo justificar, no que respeita a medidas restritivas. Muitas pessoas (embora cada vez menos) têm sido levadas a assumir como sua / nossa a culpa. Ouvimos e dizemos “nós portámo-nos mal, nós gastamos muito, nós andamos a viver acima das nossas possibilidades”, saindo a elite nacional e internacional verdadeiramente responsável de mãos lavadas no meio desta cantilena ensinada com conivência dos media comentadores. Dividir para reinar à boleia da crise…
A ratoeira perversa nesta argumentação é a de instigar que, no público e no privado, nos convençamos que temos de dar graças para termos emprego e fazer de tudo só para o manter ou arranjar, pois há que pensar na nossa família, segurança, sobrevivência…
O medo é propositadamente criado para gerar obediência cega, para que façamos o que for preciso para nos safarmos, nem que isso seja indigno, não ético, não produtivo e/ou ilegal…quer nos demos conta disso, quer (ainda) não.

vascoespinhalotero@hotmail.com
(*) Psicólogo das Organizações / Gestão de Recursos Humanos / Desporto / Orientação Vocacional

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