quarta-feira, 4 de junho de 2014

NIVELAR POR BAIXO (1ª parte)


Nos tempos que correrem, vemos o argumento de equidade entre público e privado ser muitas vezes usado por Governo e Troika, entre outras elites, para justificar cortes, quer num lado, quer noutro, de uma só vez ou por fases. Enfim, o método parece simples, estica-se a corda num lado para depois poder fazer o mesmo no outro, tudo em nome da tal… equidade entre público e privado. Ficamos com a sensação ou pelo menos com a desconfiança de estarmos perante um entretenimento de dividir para reinar.
É como se pais dissessem aos seus dois filhos que, por um ter um brinquedo e o outro não, a solução seria pôr o brinquedo no lixo para ambos ficarem equitativamente… insatisfeitos. Curiosamente, este argumento é só usado por quem manda nivelar por / para baixo…
Por exemplo, numa altura em que se discute o aumento do tempo mínimo de trabalho no setor público, não será difícil adivinhar que, daqui a uns tempos, também as horas de trabalho no privado poderão ser (oficialmente) esticadas… Depois virá muita gente dizer que no público também se tem de apertar, seguida da anterior reação e assim sucessivamente até chegarmos aos níveis de exploração do tempo de vida das pessoas que se praticam em países asiáticos.
De facto não se trata sequer de aumentar a produtividade, parece pretender-se somente baixar o custo da mão-de-obra e prolongar o tempo ao seu serviço.
Um facto simples parecer comprovar esta visão. Com o fim dos contratos coletivos e as portarias de extensão, os trabalhadores do setor privado continuarão a dizer “muita sorte tenho eu se tiver trabalho” e a ser mais facilmente “espremidos”. Os colegas do público também o serão por outras vias como, por exemplo, o esvaziamento de funções da responsabilidade de funcionários públicos para justificar a extinção do posto de trabalho e o consequente, melhor ou pior disfarçado, despedimento sem justa causa e/ou, progressivamente, com ausência de indeminização…
Vale a pena recuar um pouco no tempo e recordar que, desde os primeiros governos dos anos 70 pós 25 de Abril, a aproximação entre setor público e privado era um objetivo assumido claramente, embora com aspirações positivas bem distintas… Na altura, o desafio proposto era tornar o emprego no privado equiparado em dignidade e segurança ao seu “irmão” público. Enfim, de forma genuína, procurava-se nivelar por / para cima em termos de direitos e deveres. Apenas nas últimas décadas, o conteúdo desta visão foi (propositadamente?) desvirtuado, o sentido desta aproximação inverteu-se e agora a lógica parece ser apertar no privado e depois dizer que os “malandros” do público têm de ir atrás… Ora, porque não se segue o rumo inverso hoje em dia?...
Quando algum atrevido ou ingénuo questiona o porquê de não se darem direitos (que não são privilégios, pois também contêm deveres) que foram estabelecidos no setor público ao setor privado, o que acontece? Há sempre alguém que responde “popularuchamente”: “pois, é só direitos, só direitos, então e quem paga a crise”?
Esta estigmatização social tem vindo a ser aproveitada e/ou estimulada pelos sucessivos Governos e pela troika, porém as justificações dadas para o corte destas que seriam afinal as efetivas “gorduras” do Estado (deixando de fora as verdadeiras…) colidem com alguns factos.
Senão vejamos, o peso dos salários na despesa pública é de apenas 20%, a maior fatia é concentrada em altos cargos (daí a média poder parecer elevada para o comum cidadão, mas a moda não…) e a percentagem de funcionários públicos na nossa população ativa é das mais baixas da União Europeia.
Diz-se que a riqueza é gerada pelo privado, mas também há muita riqueza desviada pelo mesmo, acima de tudo, pelo “grande” privado e não tanto pelos pequenos comerciantes, no que respeita aos números redondos.
O argumento da recessão e/ou da crise tem servido para tudo justificar, no que respeita a medidas restritivas. Muitas pessoas (embora cada vez menos) têm sido levadas a assumir como sua / nossa a culpa. Ouvimos e dizemos “nós portámo-nos mal, nós gastamos muito, nós andamos a viver acima das nossas possibilidades”, saindo a elite nacional e internacional verdadeiramente responsável de mãos lavadas no meio desta cantilena ensinada com conivência dos media comentadores. Dividir para reinar à boleia da crise…
A ratoeira perversa nesta argumentação é a de instigar que, no público e no privado, nos convençamos que temos de dar graças para termos emprego e fazer de tudo só para o manter ou arranjar, pois há que pensar na nossa família, segurança, sobrevivência…
O medo é propositadamente criado para gerar obediência cega, para que façamos o que for preciso para nos safarmos, nem que isso seja indigno, não ético, não produtivo e/ou ilegal…quer nos demos conta disso, quer (ainda) não.

vascoespinhalotero@hotmail.com
(*) Psicólogo das Organizações / Gestão de Recursos Humanos / Desporto / Orientação Vocacional

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