domingo, 3 de junho de 2007

Tipo Gil Vicente e tal...

Há muito que um programa de televisão do principal canal público não causava tanto falatório. Não por motivos de pura polémica ou escândalo vazio e “comercialóide”, nem pelo sensacionalismo ou cultura do banal, mas sim simplesmente pelo seu rico e interessante conteúdo e forma: “Isto é uma espécie de magazine”! O novo programa dos “Gato Fedorento” é a mais recente prova de que é possível a máxima “faça você mesmo”. É que sabe mesmo bem observar como pequenos pormenores que já todos vimos, ouvimos ou sentimos, no dia-a-dia da nossa sociedade, são apresentados, de forma descontraída, em rábulas inteligentes, criadas com uma subtil “piscadela de olho”.

Há muito que os domingos à noite não eram tão ansiados (será que ninguém se lembra que o dia seguinte é segunda-feira de manhã?), existindo muitas vezes a expectativa sobre o que é que eles vão fazer desta vez. E a verdade é que este humor é mesmo “sério”! No sentido em que as caricaturas apresentadas retratam com precisão milimétrica estereótipos sociais, económicos, culturais e mesmo religiosos, numa análise nacional e também internacional. Tudo isto com um doce ingrediente de aula de cidadania actualizada e espírito crítico atento e, sobretudo, construtivo…

Muitas vezes parece que podemos imaginar os próprios visados das divertidas críticas a rirem e a aplaudirem, sendo que alguns destinatários concerteza perceberão o “presente envenenado”, enquanto que outros julgarão que a “carapuça” servirá a alguém que não eles ou que foi apenas uma piada como outra qualquer... O estilo destes brilhantes rapazes, cada vez mais mordaz e certeiro, faz lembrar em conteúdo e, algumas vezes, também na forma, as obras de Gil Vicente e mesmo de Eça de Queiroz!

O seu humor não agrada a todos, é certo. Entre os cépticos encontramos pessoas que preferem o estilo mais “terra a terra” de Fernando Mendes, Camilo de Oliveira, Marina Mota, entre outros representantes do humor da revista “à portuguesa“, carregada de tradição e carinho no nosso coração. No entanto, também este público começa a apreciar, por vezes, algumas “tiradas”, sendo que noutras ocasiões optam por abanar a cabeça em sinal de desaprovação moral (embora apreciem bastante os trocadilhos “marotos” do humor mais popular presente nos “Batanetes” ou “Malucos do Riso”). No fundo, esta caracterização poderia simbolizar o possível choque de valores entre gerações no nosso país, porém a coexistência dos diversos “humores” a que assistimos, hoje em dia, é prova dada de que este é um exemplo de integração democrática e tolerante, digno de ser mencionado como modelo a adaptar para outras áreas…

Esta nova vaga humorística em Portugal não surge vinda do nada. Muito se deve à fase de reinvenção mediática do humor que nos foi trazida pela moda do “stand-up comedy”. Mesmo aqui se conseguem discernir diferenças entre o estilo de anedota de que é particular especialista Fernando Rocha e o estilo mais corrosivo, cínico e sedutor de Bruno Nogueira, Rui Unas, entre outros). Ora, numa altura de aparente decadência do “pai” do humor moderno português, Herman José, que à semelhança de Jô Soares, tem vindo ao longo da última década, a preferir o conforto dos sofás nos “talk-shows” do que a criatividade e agitação dos programas regulares de humor, o humor português trilha um caminho sorridente na companhia de novos valores, vindos de uma geração que cresceu a ver séries “Tal Canal”, “Duarte e Companhia”, “Herman Enciclopédia” e o não tão valorizado quanto merecia: “Contra-Informação”!

O espaço conquistado a pulso, com mérito, de projectos como “Portugalmente”, “Cabaret da Coxa” ou “Revolta dos Pasteis de Nata”, para além do já referido “Gato Fedorento”, provam que a inovação portuguesa não é brejeira, nem precisa de importar ao “kilo” séries estrangeiras de qualidade duvidosa (embora as séries de qualidade escolhidas “a dedo” sejam sempre bem-vindas). Sublinhe-se, para que equívocos não se gerem, que os “craques” desta área recusam a defesa “miserabilista” do seu trabalho, bem como a ideia do “orgulhosamente sós”, pelo contrário, assumem referências nacionais, que já abordei, mas também de outros projectos e personalidades internacionais. Há que reconhecer que ao nível dos centros de decisão desta área, neste caso os produtores do mercado televisivo, parece que se está finalmente a perder a vergonha de apostar nos jovens valores nacionais.

Por que não fazer o mesmo com outras jovens ideias inovadoras em diversas áreas do nosso país? Diz que é uma espécie de desafio…

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