Antigamente, a profissão era, muitas vezes, herdada por tradição familiar, numa suposta continuidade de características genéticas relativas a interesses e capacidades transmitidas de geração em geração. Tinha-se como certo que “filho de peixe sabe nadar”. No entanto, com o avançar da História as tradições foram caindo, para o bem e para o mal, e os “filhos deixaram mesmo de saber nadar” ou talvez nunca tivessem mesmo gostado de “nadar”.
Ou seja, as novas gerações ganharam mais espaço para apresentar aos antecessores os seus interesses e capacidades, não apenas aquelas que os seus pais gostariam que tivessem. Os “filhos de peixe” passaram a poder assumir que preferiam, por vezes, correr, saltar, estudar ou trabalhar noutro ofício.
Esta nova liberdade gerou mudanças repentinas que, nalguns casos, criaram vergonha nos “novos” em assumir os labores familiares dos “velhos”. Pela sua parte, os pais, embora desgostosos, acabaram por aceitar as novas opções dos filhos, muitas vezes, quando lhes era explicado que as saídas profissionais ou salário eram mais risonhos...
Ora, se seguir, sem escolha alternativa, a profissão dos pais, hoje em dia, já é pouco aceitável, também o será o menosprezar destas “velhas profissões” por não estarem na moda ou não constituírem estatuto de doutor, engenheiro, enfim.
O mesmo erro é cometido relativamente às tradições e “compreensões” culturais, que passando durante décadas de geração em geração, “emperraram” nestas últimas (das quais também faço parte). Ora, este “corar de vergonha”, relativo ao passado profissional e cultural de muitas gerações em Portugal, criou um “buraco” de partilha de experiências e de valorização profissional, cultural e, porque não, de orgulho nacional (que não se mede apenas pelos gritos das claques da selecção nacional de futebol...).
Julgo, porém, que felizmente começamos a recuperar deste bloqueio. Já podemos ver, por exemplo, gente nova com profissões simples e manuais. Nestes casos específicos, o papel dos cursos profissionais, técnicos e os novos currículos escolares foi e continuará a ser fundamental para combater o insucesso escolar e a acumulação de mão de obra pouco qualificada e desempregada... Já ouvimos dizer com orgulho ou naturalidade sem complexos “sou mecânico”, “sou pintor”, “sou jardineiro”, entre outros.
Por outro lado, vemos de igual modo, hoje em dia, frequentemente, pessoas bastante qualificadas terem como hobbies actividades mais simples e “humildes”. No fundo, talvez sempre tenham sido a sua verdadeira vocação, mas que, por diversos motivos (financeiros, saídas profissionais, proximidade de casa ou estatuto socio-profissional), foram postas de lado. É, pois, possível conciliar o que se faz e o que se gosta no mesmo trabalho ou na conjugação trabalho/hobbie. Não deixo de pensar que o assumir, na idade adulta, destes sonhos ainda possíveis de realizar é um acto de comunhão com o passado pessoal, mas também com a herança geracional, no sentido em que aprendemos a respeitar outras profissões, outros tempos e realidades, outros projectos de vida.
E depois há questão salarial... Atentemos para o facto de que, actualmente, um bom mecânico poderá ganhar mais dinheiro do que um mau” engenheiro”, pelo menos assim faria sentido... Acho que não serei utópico, mas sim realista se esperar que um dia as pessoas ganhem mais ou menos, em grande parte, pelo seu desempenho pró-activo e não pelas “medalhas” que trazem ao peito ou anéis nos dedos.
Sonho até que a “doutourice” ou “engenheirice”, ou seja, a reverência e subserviência das pessoas relativamente aos detentores de títulos profissionais sonantes (que de tanta mordomia mais parecem de tempos passados) terá inevitavelmente os dias contados. Se quisermos apostar no desenvolvimento sustentado e não na exploração do “zé povinho” remetido ao suposto seu estatuto de trabalhador “não –pensador”. Creio ser inevitável seguirmos por este caminho...
Temos exemplos concretos desta pesada corrente cultural que se manifesta também no século XXI : os estrangeirismos que usamos na nossa língua para dar um “ar moderno”, os termos técnicos com que nos vangloriamos sem conseguir “trocar por miúdos”, a pomposidade do fato e gravata que nos retira naturalidade de movimentos e pensamento, a hiper-preocupação ou obsessão em dar uma boa imagem (esquecendo quem o faz que se trata apenas disso, não mais do que uma “casca” que não chega para mostrar recheio...). Devo dizer até que, a título pessoal, não me convencem sobre a manutenção de termos “estrangeiros” na língua portuguesa, supostamente, por não haver tradução possível para português...
Por mais paradoxal que possa parecer, penso que, para os portugueses vencerem o desafio da inovação, a recuperação deste conhecimento e orgulho do passado profissional e cultural das anteriores gerações nacionais é essencial. Sucede que isso pode ser transformado em confiança para criar, propor, arriscar, na medida em que sabemos o “chão que pisamos”, a História que herdamos e o futuro que podemos fazer crescer. Conhecer o nosso passado permite-nos olhar em frente, pois sabemos que representamos uma “equipa de várias gerações“.
Poderão dizer-me que estou a ser demasiado drástico ou abusivamente generalista (é claro que há excepções), mas a História, neste caso, suporta o meu juízo. Basta pensar na quase eterna submissão portuguesa ao império inglês e, em contraponto, ao empreendorismo dos Descobrimentos em que avançamos, arriscamos e inventamos sozinhos, mas juntos e esclarecidos sem “falinhas mansas”...
vascoespinhalotero@gmail.com(*) Psicólogo do Trabalho e das Organizações / Orientação Vocacional
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