terça-feira, 2 de janeiro de 2007

Ver o futebol com outros olhos


Em primeiro lugar, devo esclarecer uma coisa: eu gosto de futebol e vibro com os jogos do mundial de futebol, mas vejamos...

Nestes dias de festa, é mais comum encontrar motivos de alegria ou sofrimento “desportivo” do que consciência social, pois parece que o mundo parou e que está tudo a ver, ingenuamente, os jogos. Sei que vou parecer chato para alguns, mas é, no mínimo, surreal analisar como pessoas que vivem em países onde reina insegurança, exclusão social, desemprego, trabalho precário, educação minimalista suspiram pelos seus heróis que jogam (qual soldados que lutam!) pela sua pátria (a troco de alguns milhares de euros...).

O futebol “indústria” é assim mesmo, e levado ao extremo, é concerteza mais uma forma de alienação que tem paralelo, por exemplo, com o concurso “Euro Milhões”: nestes dois fenómenos a maioria das pessoas (pobres) sonha ser milionária e famosa de um dia para o outro!...

Por outro lado, não falamos só de futebol, falamos do Mundial de futebol! A representação de cada país neste evento pode constituir-se como um depósito de esperança colectiva de um futuro risonho, qual via para a união nacional. Basta recordarmos a euforia que se viveu no nosso Euro 2004!

Mas a história da humanidade já deu alguns exemplos do lado negro desta mobilização de massas... Muitos foram os regimes políticos que se serviram de sucessos desportivos internacionais como exemplo para colocarem as “massas na ordem”, ou seja, no seu caminho de formatação cinzenta em que o pensamento crítico, criativo ou inovador era linchado em função dos interesses da nação agora coroada.

Homens como Hitler, Mussolini, Péron ou mesmo Salazar foram mestres neste jogo de se servirem destes fenómenos para conseguirem obter do povo “certificados de qualidade” aos seus regimes opressivos que afinal “davam” vitórias à nação... Atentemos que nestas vitórias sempre era realçada a Imagem do país como entidade suprema a preservar. Esta estratégia baseava-se, de maneira quase mesquinha, no mostrar, no parecer e não no aproveitamento do que as pessoas da “casa” tinham para dar, criar ou fazer! No fundo, acabava-se por copiar o que se fazia “lá fora” e mal com vergonha de ficar mal visto no estrangeiro...

Neste ponto, considero que Portugal de hoje em dia continua a falhar redondamente, pois se pensarmos friamente no que lucramos internamente (não só financeiramente, mas também em termos de inovação) com a Expo98, Euro2004 ou Porto Capital Europeia da Cultura... Um exemplo inverso desta fenómeno surge quando percebemos o “salto” que “nuestros hermanos” deram com os Jogos Olímpicos de Barcelona e a sua Expo em 1992!

Ora, em contraponto aos exemplos que atrás referi (de aproveitamento ditatorial de vitórias desportivas para blindar o poder e legitimar a cultura de isolamento) podemos recordar alguns momentos notáveis. Ainda recentemente tivemos um exemplo paradoxal e interessante. No Mundial de futebol de 1998, a França venceu o campeonato com uma equipa composta, quase exclusivamente, por jogadores oriundos de outros países, rotulados por muitos, em generalizações perigosíssimas, de “terroristas” ou inimigos da pátria da “Marselhesa” como facilmente um qualquer Jean Marie Le Pen apontaria numa retórica primitiva... Pelo menos durante uns tempos, este país reconheceu e aplaudiu a sua multi-culturalidade através daquela equipa, transpondo para cada cidade, cada bairro, cada casa um orgulho pela diversidade, pela partilha e pela solidariedade. Curiosamente, a equipa acabou por funcionar como lendário modelo de tolerância e convivência a seguir pelo o país e pelo o mundo!

Há que sublinhar sensatamente que o espírito que se criou naquela equipa não surgiu de um dia para o outro. Conta-se, por exemplo, que jogadores e técnicos, antes do campeonato se iniciar, passaram, propositadamente, o Natal juntos, isolados numa casa de montanha, num episódio que ainda hoje é referido pelos intervenientes como marcante!

Um exemplo inverso surge com a Selecção holandesa de futebol que é composta por alguns jogadores oriundos do Surinam que não são “misturados” com os restantes colegas de selecção, tendo inclusive um treinador próprio...

É possível concluir que este fenómeno desportivo global pode, de facto, servir de modelo de atitudes e comportamentos sociais. Por um lado, pode gerar num país uma onda de formatação cinzenta, onde se consolida o “orgulhosamente sós” da anti-diversidade. Por outro lado, pode potenciar um outro resultado: o exemplo da confiança. Centremo-nos, por exemplo, na actualidade portuguesa. Confiança para quê? Para apostar nos nossos valores (sem copiar o que se faz lá fora, dizendo que se está a adaptar...), para receber e abraçar a diversidade e influências, para “empurrar” a audácia de inovar, criar, arriscar, inventar (que não é sinónimo de desenrascar...) com os Figos, Ronaldos e Decos do nosso país multi-cultural.

As repercussões a nível económico, social e cultural poderão ser, a longo prazo, massivas, pois em alturas de dúvida sobre se uma empresa é capaz ou não de lançar um produto inovador alguém se há de lembrar: também aquela equipa de futebol conseguiu!

Analisando de outro ponto de vista, após a euforia criada pela conquista estritamente desportiva (porque afinal de contas é apenas um campeonato..) tudo o resto pode ficar na mesma... E aí voltamos a reflectir sobre o desporto “indústria” como forma de alienação, como meio de nos impedir de pensar e estar atentos a outras questões, porventura, as mais importantes...

No fundo, não importa o acontecimento, importa que uso fazemos dele. Após esta reflexão, não posso deixar de lançar um desafio de previsão ao leitor: o que aconteceria se selecção portuguesa fosse campeã do mundo de futebol?

vascoespinhalotero@hotmail.com

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