terça-feira, 2 de janeiro de 2007

A Perda de uma Pessoa


As chamadas intervenções em crise têm sido mais faladas em termos mediáticos por altura do Verão, aquando das tragédias humanas causadas pelos incêndios ou noutras calamidades públicas que envolvam perdas materiais e, sobretudo, humanas. O apoio psicológico nestas situações de perda inesperada é muito importante (pois cada pessoa que sentiu a perda está tão abalado por esta que apenas consegue preocupar-se, numa primeira fase, em reagir individualmente), mas também o poderá ser nas situações de perda já esperada, tudo depende de muitos factores... E como saber se precisamos de ajuda ou não?

Os acontecimentos de perda não se tratam daquelas situações que pensamos só acontecer aos outros e depois até nos podem acontecer a nós, são sim acontecimentos inevitáveis na vida! A questão aqui é como reagir da melhor forma possível e evitar que uma má “digestão” deste processo nos marque negativamente para o resto da vida. Sim, porque existe o perigo, não pelo acontecimento negativo em si ter ocorrido, mas sim pela forma como o “encaixamos”. É óbvio que cada pessoa tem a sua forma específica de ser e, consequentemente, de reagir. É bom esclarecer que a boa gestão psicológica da situação não é sempre a mesma, ou seja não existe uma “receita única que se dê às pessoas para que não fiquem traumatizadas com a perda que sofreram”!

Cada pessoa “trabalha” a questão de maneira diferente, trilha caminhos próprios, mas existem parecenças gerais e “sinais vermelhos em várias dessas estradas” que não se podem passar e às vezes sozinhos não os conseguimos distinguir. Agora o que se pode fazer autonomamente, em grupo/família e/ou com apoio psicológico profissional é prevenir, no momento a seguir à perda (horas, dias, meses), que não se reaja de formas específicas bem descritas que já sabemos poder ter consequências danosas no futuro para pessoa.

Nas situações de perda é importante realizar o luto sob dois grandes pilares: as atribuições do acontecimento (“porque perdemos esta pessoa?”; “porquê agora?”; “existe um responsável por esta perda?”; “agora fiquei sozinho?”; “sofro mais ou menos que os outros?”; “o que é que poderia ter feito para impedir isto?”, etc) e as recordações da pessoa que perdemos (ex: a forma como descascava uma laranja, como andava de bicicleta, a sua preguiça em trabalhar, as brincadeiras com os netos, a barba que picava quando lhe tocavam, as suas intermináveis histórias à refeição, etc).

Relativamente ao primeiro pilar, aqui mais que tudo é necessário que uma ou mais pessoas ao lado ajudem quem faz o luto a elaborar respostas verdadeiras e adequadas, não fugindo aos factos, evitando dúvidas e principalmente atribuições extremas e perigosas que possam gerar revolta, agressividade, vingança (ex: “isto foi tudo culpa de Deus”; “vou vingar-me”; “agoira não confio em ninguém”; “as pessoas são todas más no mundo”, etc). Atenção que isto não implica que se uma pessoa quiser gritar, chorar desalmadamente não o possa fazer! Apenas o conteúdo das suas explosões é que deve ser apoiado e explicado convenientemente. Como? Com espaço, esperando pelo silêncio da pessoa para então falar de forma a que ela oiça realmente! E não de “rajada racional”, “calando a pessoa”, reprimindo-a até mesmo involuntariamente, não deixando espaço à pessoa para libertar as emoções! Só depois desta libertação poderá mais facilmente compreender a análise racional dos factos que lhe é proposta por quem está a apoiar (amigos, família ou profissional).

Aliás, os ataques de choro são momentos de catarse importantíssimos que normalmente surgem em presença de pessoas que nos são queridas e que conhecem bem o nosso interior, representam o quebrar das nossas barreiras racionais e o abrir de portas à emoções que depois ajudam a equilibrar a nossa personalidade e vivências futuras. Em suma, são inevitavelmente necessários e estruturantes para a nossa vida! O perigo surge quando a pessoa não chora, mantém-se com “compostura”, supostamente está bem, mas há uma série das tais questões que referi atrás que ficaram mal esclarecidas, cria-se a uma calma aparente que mais tarde se mostra na forma de depressão, ataques de fúria, em atitudes frias e calculistas, enfim, psicopatologia ou mesmo psicopatia!

Relativamente ao segundo pilar chamo a atenção para o facto de se ter referido, como exemplos, pormenores característicos de uma pessoa, bons ou maus, não fazendo dela um “santo” nem um “diabo”! Estas duas tentações tornam-se perigosas no sentido em que poderão muito facilmente levar a pessoa que faz o luto a dizer “esta era uma pessoa totalmente perfeita, a vida vai ser terrível sem ela” ou “esta pessoa era totalmente terrível, ainda bem que partiu, se calhar até foi bom”. Ora, tanto uma posição extrema como a outra levam a que nos recusemos a reconhecer o legado de conjunto que a pessoa nos deixou e que “escavemos um buraco” nas recordações da nossa vida (sucede que mais tarde idolatramos a pessoa de forma doentia e só falamos dela ou, no outro extremo, já não nos lembramos sequer dela e temos vergonha que tenha existido por completo).

Para evitar estas situações é bom que falemos com pessoas que nos são próximas ou genuinamente interessadas em ouvir-nos sobre as características da pessoa que partiu, na fase que se segue à perda (não deixemos isso para depois, isso será uma fuga que depois nos dará um “nó na barriga” de angústia do que ficou por dizer!). Por um lado, não nos devemos “fechar” pelo suposto receio de demonstrar fraquezas ou de ser “lamechas”. Por outro lado, também não deveremos andar por aí a falar com “toda a gente que nos aparece à frente”, pois não podemos ter a atitude carente ou fria de “publicitar” uma perda que sofremos para obter ganhos e favores futuros: uma perda não pode ser nunca um instrumento!

Como há tempos um amigo me disse: as pessoas não têm defeitos nem qualidades, têm características e todas elas são únicas! Já pensaram que não há ninguém no mundo que caminhe da mesma forma, que sorria da mesma forma, que pegue numa caneta da mesma forma, que diga bom dia ou boa tarde da mesma forma, entre outros milhares de coisas únicas? É precisamente isto que devemos recordar e partilhar com pessoas que nos são próximas sobre a que partiu, pois estas são as suas marcas. Essa é a melhor forma de agradecermos a presença da pessoa que perdemos na nossa vida, de dizermos obrigado por tudo o que fizemos juntos. E eu digo obrigado avô.

vascoespinhalotero@hotmail.com

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