terça-feira, 2 de janeiro de 2007

O Dia da Inspecção


“Oh não ..., tenho de ir à inspecção militar!” Este foi concerteza um pensamento que atravessou a mente de muitos jovens, residentes no Concelho de Cantanhede, entre os quais me incluo, após verificarem que o seu nome constava na convocatória para o referido “exercício”. A imagem estereotipada de rigor e exigência (conceitos muito em voga para as bandas “educativas” de S. Bento) da “tropa” atemorizava-nos timidamente (“Eu cá não tenho medo!...”). Mas ninguém queria lá ficar e eis que chega o Dia D!

A romaria iniciava-se. Destino: Quartel da Ajuda em Lisboa. Como nos sentíamos? Bem, como miúdos que iam pela primeira vez à escola! Nunca as deficiências físicas ou psíquicas foram tão abençoadas como naquele dia. “Trouxe um atestado, assim safo-me!” No entanto, eu acalentava a secreta esperança de encontrar um pouco a desmistificação deste “Adamastor”. Seria possível que o serviço militar fosse uma aventura enriquecedora, uma escola de vida (era disto que o meu avô me falava) em que, para além das competências básicas de treino militar e de sobrevivência, pudessem ser incrementados valores como a solidariedade, ajuda à comunidade e a liberdade de expressão. Afinal de contas estes foram os pilares que suportaram toda a inestimável intervenção do Movimento das Forças Armadas no 25 de Abril de 1974! Ora, nos tempos que correm, em que tais utopias passaram de moda, a realidade revelou-se tão hilariante quanto cruel. A escola de vida que ansiava encontrar constituía-se, pelo contrário, como uma escola do marasmo, da inoperância e do autoritarismo desmedido.

O tempo de serviço daqueles homens era dedicado a difíceis, arriscadas e valorosas missões de apoio à sociedade como... jogar uma futebolada no quartel, cortar a relva com precisão geométrica, descansar e ver televisão no bar, sem menosprezar a mais importante das missões: disparar frases de ordem para os inspeccionados! Quando se lhes perguntava: “Por favor onde é a comissão de inspecção?”, respondiam: “Façam uma fila!” Houve quem estabelecesse o paralelo entre esta arrogância e os rituais mais agressivos da praxe académica. Concordei em parte...

Penso não ser uma crítica desajustada referir que existe um défice comunicativo e assertivo nalguns dos nossos oficiais. Estas competências de resolução de problemas e apoio interpessoal deveriam ser adquiridas, não apenas de uma forma esporádica ou autodidacta, como sucede com as honrosas excepções. Estes factores são peças fundamentais em situação de guerra! As regras são necessárias, são benvindas e a disciplina e a autoconfiança indispensáveis, sem dúvida! Agora a dominação, pelo simples prazer de maltratar e de mostrar o “lobo” que há em nós, é ridícula. Dá mesmo para rir, acreditem!

Devo, justamente, referir que se deve ter em conta os condicionamentos financeiros e logísticos de toda a estrutura militar. Há pessoas com potencialidades, capazes de movimentar construtivamente toda esta massa, mas que de uma forma ou de outra têm as “mãos atadas”! Este facto faz-nos reflectir sobre as políticas orçamentais seguidas. Damo-nos conta dos milhões gastos em aviões F-16, pré-sucata, em contraste com a “pré-historicidade” dos exames psicotécnicos utilizados nesta inspecção e com a falta do pequeno incentivo económico (não há gasolina para a maior parte dos meios de transporte) e formador (os homens não têm outra alternativa senão ficar “presos” no quartel a “brincar às guerras”!).
O serviço militar não obrigatório é um avanço óbvio e inevitável, porém esta compactação em termos de pessoal deverá também ser acompanhada por uma renovação de mentalidades e de políticas de intervenção social. É possível, com a nossa voluntariedade tão portuguesa, flexibilizar e diversificar as características de um exército, que tanto poderá colocar tropas de intervenção numa zona de guerra como na limpeza das matas ou no apoio a pessoas desfavorecidas.

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